Salvar Madre de Dios

Quatro cenas se repetem ao longo dos 700 quilômetros de Amazônia que CONNECTAS percorreu no coração da América do Sul através da Estrada Interoceânica e em sua zona de influência: desertos mineiros onde antes havia floresta densa, pedaços de floresta calcinados, árvores mutiladas e cobras sobre o asfalto fugindo, junto com outros animais selvagens, de um habitat que agora se torna hostil para eles. Assim, o setor de Guacamayo da floresta peruana é hoje um areal interminável amarelo claro, como se fosse uma praia. De acordo com as autoridades locais, em dois anos arrasaram os 20 mil hectares de floresta que havia lá. A uns 800 metros, passa um rio turvo, ocre, com umas poucas plantas tentando sobreviver em sua ribeira. Já não se escuta o canto dos pássaros, nem o zumbido de centenas de insetos que povoavam essa floresta cheia de biodiversidade. Agora o que enche os ouvidos é o barulho de bombas extratoras que lavam a terra para que reluza o ouro escondido. Os únicos seres vivos são os trabalhadores sem camisa que, de uma artesanal barcaça que flutua na água parada no fundo do buraco de dez metros provocado pela bomba que suga, vigiam a operação. "Praia adentro", dizem os habitantes locais, a paisagem é desoladora. A poucos minutos da pesada caminhada na areia, sai um dos mineiros dizendo "Não podem estar aqui. É propriedade particular". Protege um rudimentar sistema de polias que sobe a terra e a deixa sobre uma lona esticada que serve de peneira. O governo está fechando minas ilegais e os afetados estão resistindo com violência. Por isso, quando o mineiro vai à busca de seus companheiros para encarar os intrusos, é melhor ir embora. Neste ponto, como uma ilusão, no horizonte se vê a linha verde onde a floresta ficou. Mas logo estará mais longe. Mais para frente, no outro lado da estrada, dá para ver a terra ainda úmida. Um perfeito retângulo preto, rastro da chamuscada feita por alguém. Uns poucos troncos queimados são testemunhas de que aqui houve vida. Paisagens carbonizadas similares se veem uma e outra e outra vez ao longo do percorrido. [caption id="attachment_15117" align="alignnone" width="417"] O desflorestamento vem aumentando desde a chegada da Interoceânica como resultado da falta de planejamento e controle.[/caption] [caption id="attachment_15118" align="alignnone" width="417"] Da estrada, centenas de improvisados caminhos são construídas para entrar na floresta. Isso facilita a extração de recursos naturais.[/caption] A fronteira entre a Bolívia e o Peru, na altura do povoado de Soberanía, está marcada por dois pilares de cimento que apenas se veem, na floresta virgem. Esse vasto setor é como percorrer uma rua de Manhattan, mas em lugar de arranha-céus, o que há são árvores imensas de cada lado, de 40 e 50 metros de altura, e milhares de borboletas voam nos seus extremos como se se organizassem por cores, enquanto um bicho-preguiça atravessa a estrada e foge o mais rápido que o seu passo lento permite, evitando os visitantes. Do lado boliviano, fica a Reserva Nacional de Manuripi e, no Peru, a Reserva de Tambopata. Mas, nessa fronteira selvática em linha reta de 200 quilômetros, não se deixam de escutar as serras elétricas cortando a madeira, principalmente no lado peruano. Seguir o barulho para localizar, uma não é fácil porque a floresta, no começo do trajeto, é fechada. Aparece, de repente, um conjunto de pequenas trilhas. O som parece vir do final de uma destas que termina em um clarão. Ali ao lado, jaz estendida, derrotada, uma pesada árvore do diâmetro do abraço de duas pessoas. Converteram-na em um monte de tábuas ordenas segundo a espessura. A motosserra é desligada, parece que não gostam de visitas. O guia, amedrontado, não quis continuar. "Estes taladores fazem o que querem", disse, "vão de um lado pro outro da fronteira, sem Deus nem lei". De volta à Interoceânica, andando a toda velocidade pela maltratada rodovia que percorre a parte brasileira, em um dos muitos pulos que o automóvel dá por causa dos inúmeros buracos da estrada, o motorista grita empolgado: "Vocês não viram isso?, era uma cobra gigante!". Sua euforia é detida imediatamente diante das reclamações dos passageiros. Não se deteve e acelera entrando por vários quilômetros em uma paisagem só de planície. Ali, uma vez, havia floresta. De repente, teve que parar para dar passagem a uma centena de vacas que atravessavam a estrada. Agora são elas as senhoras do lugar. Pecuária onde antes houve fauna selvagem, queimadas, corte de árvores, mineração, isso sempre teve floresta, contam as pessoas. Mas a destruição se acelerou pela estrada que aproximou os mercados e atraiu os aventureiros, principalmente no lado peruano e nos 50 quilômetros de cada lado em todos os países, que, segundo estabeleceu o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), é a área de influência dessa estrada. Nos planos, estava previsto que a Estrada Interoceânica, assim como outros ambiciosos projetos de infraestrutura para interconectar a América do Sul, cumpririam "com as normas meio ambientais que garantem um bom uso de todos os recursos naturais da zona, permitindo o controle dos abusos que, às vezes, se cometem com esses recursos de maneira ilegal". Contudo, na prática o que se vê é que, apesar de suas dimensões – três países, o financiamento da banca multilateral e o alto impacto sobre a frágil ecologia amazônica –, o planejamento estratégico do impacto ambiental da estrada vem resultando deficiente, e a gestão e o controle, insuficientes. As autoridades não estão dando conta de fazer deste nervo condutor da economia sul-americana um projeto ambientalmente sustentável. Não há dúvidas de que, com a interconexão que a Interoceânica traz, mercados se abrirão e o desenvolvimento econômico decolará; contudo, sem um decidido regulamento e controle, o preço que as próximas gerações pagarão pode ser alto demais. Como explica o especialista florestal Marc Dourojeanni, autor do texto A Amazônia Peruana em 2021, nos países desenvolvidos construir estradas não significa destruir recursos naturais e, inclusive, se fazem estradas que atravessam parques naturais sem danificá-los. Em compensação, com a Interoceânica, "em vez de só permitir a comunicação entre dois pontos e o uso de terras aptas para a agricultura previamente separadas para esse uso, a população se instala desordenadamente, em qualquer lugar e sem pedir permissão para ninguém, muitas vezes com o consentimento dos políticos locais. Assim se ocupam terras indígenas, áreas protegidas e solos sem capacidade de uso agropecuário, ocasionando um tremendo e inútil desflorestamento".. É tanta a desorganização que inclusive as autoridades da capital peruana avaliam denúncias nas quais a mesma maquinaria que foi usada para construir a estrada terminou no serviço da mineração ilegal. [caption id="attachment_15119" align="alignnone" width="417"] A antropóloga Angélica Almeyda mostra com imagens de satélite como vêm se multiplicando essas rudimentares vias de acesso desde 1990, que passaram de 4.686 quilômetros a 11.045, em 2007.[/caption] A sobreposição de concessões No lado peruano, onde se vê maior devastação por causa da estrada, há um incentivo institucional perverso: a outorga de concessões para diferentes propósitos em zonas que estão se sobrepõem. Assim, cruzam-se as concessões para a exploração madeireira com as que têm permissão para fazer mineração; e destas com as áreas destinadas para a pecuária, desenvolvimento agrícola ou para a exploração da castanha, do ecoturismo e até para a exploração do petróleo. Estas zonas, por sua vez, em certas ocasiões sobrepõem reservas ambientais ou reservas indígenas. "Em seu momento não houve um trabalho conjunto das entidades do Estado", reconhece o presidente regional de Madre de Dios, José Luis Aguirre. Essa bagunça nas normas facilita a depredação. É o que acontece na margem esquerda da Interoceânica na via que vai para Cusco. Lá está a área de amortecimento da reserva de Tambopata, onde existiam algumas concessões para a agricultura. Mas seus donos entregaram suas propriedades aos mineradores, argumentando que, como em zonas limítrofes e em uma vasta zona do outro lado da estrada havia concessões mineradoras, eles também podiam alugar seus terrenos para a mineração. Assim, pouco a pouco, os exploradores de ouro foram colonizando; no entanto, a febre subiu à medida que os preços internacionais do metal subiram. Com a onça troy a 1.900 dólares, inclusive voltaram a explorar minas que não eram rentáveis quando esta valia menos de 500 dólares há cinco anos. Era relativamente óbvio antecipar as dificuldades que viriam com essas sobreposições, bem como resolvê-las antes que a estrada piorasse os conflitos. O simples fortalecimento do cadastro e a conferência das diferentes concessões já seriam um grande avanço. Segundo Eleonora Silva, diretora representante do Banco de Desenvolvimento da América Latina (antes Corporação Andina de Fomento, CAF), este foi um componente do empréstimo de 18 milhões de dólares adicionais que sua entidade fez ao governo peruano para financiar o programa de gestão ambiental e social. Os recursos se investiram principalmente em estabelecer a propriedade dos ocupantes dos territórios ao longo da estrada, mas não foram suficientes para resolver o problema sobreposição das concessões. O governo local diz que espera que se faça uma revisão respeitando os títulos de acordo com a antiguidade, desde que se cumpram os mandatos do ordenamento territorial que há pouco tempo elaboraram. Pouca grana Os críticos garantem que, de qualquer jeito, 18 milhões de dólares não são suficientes para administrar o impacto ambiental de uma obra que custou 2,8 bilhões. Um estudo da organização peruana Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR) garante que a quantidade de verba destinada aos programas de gestão ambiental e social em estradas similares, segundo os padrões regionais, oscilam entre 5 e 20% do custo total da obra. Para o caso da Interoceânica, esta foi de apenas 2% da verba inicial e, para completar, a obra acabou custando três vezes mais. O presidente regional Aguirre diz que, além de pouco, o recurso "foi administrado de Lima e pouco ou nada chegou a Madre de Dios. O dinheiro ficou pelo caminho!". Conforme a publicação do DAR, o programa ambiental foi orientado a diminuir o dano ambiental e não a promover o desenvolvimento. A representante do Banco de Desenvolvimento, o qual pôs dinheiro para o programa de gestão ambiental, preferiu não comentar o relatório porque, segundo ela, o DAR fez isso sem comparar a informação com eles. Contudo, afirmou que a contribuição do Banco cumpriu com as normas sociais e ambientais, e que o programa executado ajudou, entre outras coisas, na administração de áreas naturais protegidas e na criação de novas áreas desse tipo. Também disse que o programa ambiental buscou fortalecer a capacidade institucional das entidades públicas nacionais e regionais responsáveis pela administração, prevenção e diminuição dos impactos ambientais e sociais indiretos gerados pela construção. "Foi algo que se fez o tempo todo em diálogo com as regiões", disse Silva. É importante ressaltar que, quando a estrada começou, o Peru não contava com um Ministério de Meio Ambiente, por isso tudo era administrado por uma entidade vinculada ao Ministério da Agricultura, que hoje já não existe. Além disso, nesse momento, o país recém começava seu processo de descentralização. Por isso, sabendo que o controle e a gestão ambiental dependem muito da eficiência e da independência dos governos locais, o Banco de Desenvolvimento vem fortalecendo vários programas de governabilidade e gerência política para líderes regionais em reconhecidas universidades de Lima. Existe, sem dúvidas, uma tendência mundial a que os financiadores de estradas considerem em seus orçamentos principalmente o impacto ambiental direto, como é a disposição de resíduos de obra, a construção de passagens adequadas de riachos, entre outros, e destinem menos recursos para os impactos indiretos, como são os descritos nesta nota. Assumem que o desflorestamento, o mau uso dos solos, a poluição por causa da mineração e demais coisas, estão dentro das responsabilidades gerais do Estado e não podem ser os únicos responsáveis por um projeto assim. Contudo, na América Latina, onde são limitadas as capacidades dos países, esse tipo de projeto transnacional e de interesse continental oferece uma boa oportunidade para gerar transformações emblemáticas no território. Fazer as coisas com os mínimos recursos possíveis significa perder oportunidades para saltos reais no desenvolvimento da América Latina. Há dois anos, o Peru organiza a documentação para um novo crédito de 16 milhões de dólares para melhorar a gestão ambiental, mas o processo está barrado em debates internos sobre qual dependência nacional administraria os recursos e qual seria o papel dos governos locais. Extração desmedida Enquanto isso, as atividades não autorizadas de extração de madeira andam soltas. Não faltam as leis que proíbem o corte indiscriminado, mas diante da débil ou nula supervisão e da corrupção, as normas efetivas ficam só no papel. De acordo com a Lei Florestal peruana, podem-se outorgar concessões florestais de até 40 mil hectares e, antes da estrada, em Madre de Dios, estava permitido extrair até 416pécúbicopor viagem. Mas, agora, autorizou-se retirar quatro vezes esse volume por viagem. Segundo funcionários locais a cargo do meio ambiente, isso não significa uma licença para um maior desflorestamento, mas sim que a medida vai atada a outros controles para fomentar a existência de florestas certificadas. Na zona se trabalha sob a figura de "quartéis de corte". Isso significa que o território concessionado se divide em uma quadrícula de 20 espaços, e o titular da concessão só pode cortar as árvores em um desses espaços, para que passem 20 anos antes que se volte a cortar no mesmo quadro. Considera-se que a floresta se recupera nesse tempo. [caption id="attachment_15122" align="alignnone" width="417"] Mediante massivas queimadas, os agricultores ampliam a fronteira agrícola.[/caption] [caption id="attachment_15123" align="alignnone" width="417"] Sem maior planejamento nem critério técnico, alguns municípios aproveitam a facilidade da via para jogar seus lixos perto dela.[/caption] Em teoria, pelo menos, o modelo parece viável; mas, na prática, os planos de gestão se aprovam na região, mas a supervisão de que estes se cumpram é feita por uma entidade nacional que não tem a capacidade operativa para controlar de Lima o que acontece na floresta peruana. Além disso, existe outra dependência para administrar as espécies de alto valor protegidas por convênios internacionais por estarem em vias de extinção, como o mogno. Essa estrutura, além disso, não conta com os recursos nem o pessoal necessário para atender tal responsabilidade. Não é somente um tema de ineficiência, também a corrupção no sistema de concessões no Peru impede que se protejam os ecossistemas. Isso foi o que constatou uma pesquisa jornalística realizada pela Agência de Pesquisa Ambiental (Environmental InvestigationAgency, EIA em inglês), uma organização internacional parceira de CONNECTAS nesta reportagem, que luta contra a delinquência ambiental e defende a natureza. Essa agência documentou em dezenas de casos, alguns em Madre de Dios, como donos de concessões retiram madeira como se procedesse de sua floresta certificada, mas que, na realidade, é retirada de outros terrenos ou de reservas naturais. Funcionários do governo local confirmaram que essa prática vem acontecendo e que querem poder realizar mais visitas aos terrenos para confirmar o que está se extraindo de cada um. Parte da madeira que os traficantes peruanos roubam vem do lado boliviano. Sem nenhuma delimitação real da fronteira, os taladores entram pelas melhores espécies e isso causa conflitos sociais graves. Por exemplo, Julio García, tenente governador da população de Alerta, no Peru, foi assassinado em 2008 quando tentou interceptar um caminhão que retirava, sem permissão, mogno do país vizinho (ver perfil). Com a Interoceânica, também cresceu o número de caminhos que penetram cada vez mais dentro da floresta virgem. Utilizando imagens de satélites, a antropóloga Angélica Almeyda, em sua tese de doutorado sobre desflorestamento e desenvolvimento de infraestrutura nessa região da Amazônia, apresenta como estas rudimentares vias de acesso têm crescido desde 1990, que passaram de 4.686 quilômetros a 11.045 em 2007. Nos últimos cinco anos, de acordo com um levantamento realizado pela WWF, pode-se ver como esse crescimento é exponencial. A chegada da Interoceânica gera ramais de novos pequenos caminhos. Em seus estudos, Almeyda, colaboradora de CONNECTAS nesta reportagem, demonstra como, à medida que se reduz o tempo de deslocamento para ir aos centros mais povoados, o desflorestamento aumenta. Estas vias, além disso, coíbem a mobilidade livre dos indígenas originários de Madre de Dios que ainda sobrevivem ali e que recusam o contato com a vida moderna. Em algumas ocasiões, os destroços foram causados por decisões tomadas em Lima, sem maior reflexão sobre seu impacto na floresta. Assim, em 2004, o governo permitiu a extração madeireira nas concessões de castanha e, quando aboliu a medida em 2007, já era tarde, e longas faixas nas laterais da estrada ficaram peladas. Com o adequado planejamento e com reflorestamento, isso poderia ter dado outros resultados. Agora, em algum desses trechos, iniciou-se a plantação de mamão e laranja, uma atividade que gera uma grande expectativa nos habitantes locais. Um impacto parecido teve a decisão oficial de finais dos anos oitenta, de dar as vacas às famílias colonas para que tumbassem a floresta e impulsionasse a pecuária. Acabaram com a floresta e não prosperaram porque o solo se esgotou. Mas, agora, novos colonos têm se animado para conquistar terrenos para a pecuária porque veem melhores perspectivas, com fertilizantes mais sofisticados e sementes mais resistentes à mão, e com o exemplo dos vizinhos brasileiros que converteram enormes florestas em produtivos pastos para seu gado. Iniciativas verdes Nem tudo é deterioro e perda ambiental no coração amazônico entre a Bolívia, o Peru e o Brasil. Há, nos três países, exemplos de como, se a floresta for bem administrada, a chegada da estrada pode melhorar a vida das pessoas da região e desses países em geral. Assim, em alguns lugares da Bolívia, as pessoas estão explorando a madeira de forma comunitária e racional. É o caso do povoado de Soberanía, onde o Estado outorgou 26 mil hectares a 50 famílias para que explorassem a floresta. Como parte de um plano operativo ambiental, elaboram um estudo que localiza cada árvore na geografia. Assim, define-se a madeira a ser extraída, paga-se pelos direitos e se verifica no terreno que efetivamente foram essas as árvores cortadas. Outras boas experiências se encontram do lado peruano na fronteira com o Brasil, no povoamento de Iñapari. Ali, de acordo com a informação cedida pela Prefeitura, existem cinco empresas a cargo de 600 mil hectares certificados e com permanente supervisão. Além de serem as maiores geradoras de emprego da região, começaram processos semi-industrializados para processar a madeira no mesmo local. Embora ainda queimem combustíveis para gerar a energia necessária para seus processos industriais, isso se solucionará quando a energia elétrica em forma constante chegar ao local. Essas empresas de banqueiros estado-unidenses e ingleses e de investidores chilenos, segundo disse a Prefeitura, também estão explorando a possibilidade de conservar florestas para poder vender certificados de captura de carbono no mercado internacional. No Brasil e no Peru, a produção de castanha tem-se mostrado uma atividade econômica que, na floresta, pode ser ao mesmo tempo rentável e ambientalmente sustentável. Cada ano, entre dezembro e março, essas árvores, muitas delas centenárias, soltam um coco onde estão guardadas as sementes da gostosa noz. Na zona de Madre de Dios, existem mais de 1,2 mil concessões de castanha cujas beneficiadas são principalmente famílias da região. O ano de 2005 foi, por exemplo, muito bom para essa atividade, já que o Peru exportou 18 milhões de dólares nessa noz da Amazônia. A estrada torna mais viável ainda o negócio porque diminui custos de transporte e facilita a abertura de mercados para o produto. E, ao mesmo tempo em que a produção cresce, a floresta se mantém intacta, pois, ao conservar os castanhos, também se preserva a floresta que os rodeia. Além disso, ao redor dessa produção, vários produtores que são ativos social e politicamente também se organizaram. A velha exploração do látex natural da árvore de borracha ou seringueira, que tinha sido abandonada quando apareceram os materiais sintéticos no mercado, começa a retomar voo nos três países; é outra economia que pode ser rentável e sustentável na floresta. Comunidades em reservas florestais, como a de Manuripi, na Bolívia, já usam novas técnicas que lhes permitem fornecer um produto de melhor qualidade sem prejudicar as árvores. No Peru, a estrada tem atraído outra vez investidores franceses interessados em explorar a borracha e vendê-la no comércio internacional com carimbo verde, como garantia para quem comprá-la que está respaldando uma atividade econômica que protege a Amazônia. Apesar de a castanha e a borracha serem produções sustentáveis, agora com grande potencial na Amazônia graças à Interoceânica, contam com pouco respaldo oficial. Se os governos ajudassem a comercializá-las internacionalmente, enfatizando quanto contribuem para a preservação da floresta mais importante do planeta, os produtores poderiam vendê-las a melhores preços e poderiam ter mais estabilidade, já que há momentos em que esses produtos podem atingir preços que estão em torno de nove dólares o quilo, e outros onde não pagam mais de dois. O ecoturismo abre outras possibilidades de desenvolvimento sustentável. E está crescendo a passos gigantes. Cada dia aterrizam no aeroporto de Puerto Maldonado, no Peru, cinco voos que somam uma média de 350 pessoas, principalmente turistas estrangeiros. Um dos visitantes recentes, em outubro de 2011, foi o britânico Mick Jagger, a lenda do rock, e a notícia vem atraindo mais turistas. Outros visitantes também chegam pela nova estrada desde Cusco até o porto selvático. Há 16 viagens de ônibus por semana que cobrem este trajeto. Porém, ainda há muito campo para crescer, já que a maioria dos turistas brasileiros vai a Puerto Maldonado só de passagem para as ruínas de Machu Picchu e a bela Cusco, e muitos dos estrangeiros que chegam de avião são levados diretamente aos alojamentos ecológicos e gastam pouco no povoado. A estrada que conecta os três países poderia ser uma bênção de desenvolvimento econômico e, ainda que pareça paradoxo, uma boa desculpa para melhorar a gestão ambiental e a proteção da floresta. Mas isso requer melhor legislação, mais recursos e maior visão para impulsionar as boas iniciativas. O presidente regional de Madre de Dios, José Luis Aguirre, não é otimista. Ele diz que há muitos poderes, que os mineiros impedem que juízes e fiscais protejam o delicado ambiente e que, além de tudo, o governo central os abandonou. "Me sinto desesperado, perseguido" – disse. "Se não dermos o verdadeiro impulso e apoio econômico e estratégico, vamos nos render diante das máfias que operam aqui. Estou pensando em fazer um chamado internacional para salvar Madre de Dios". Tomara que seu chamado aqui registrado ecoe.

Quatro cenas se repetem ao longo dos 700 quilômetros de Amazônia que CONNECTAS percorreu no coração da América do Sul através da Estrada Interoceânica e em sua zona de influência: desertos mineiros onde antes havia floresta densa, pedaços de floresta calcinados, árvores mutiladas e cobras sobre o asfalto fugindo, junto com outros animais selvagens, de um habitat que agora se torna hostil para eles.

Assim, o setor de Guacamayo da floresta peruana é hoje um areal interminável amarelo claro, como se fosse uma praia. De acordo com as autoridades locais, em dois anos arrasaram os 20 mil hectares de floresta que havia lá. A uns 800 metros, passa um rio turvo, ocre, com umas poucas plantas tentando sobreviver em sua ribeira. Já não se escuta o canto dos pássaros, nem o zumbido de centenas de insetos que povoavam essa floresta cheia de biodiversidade. Agora o que enche os ouvidos é o barulho de bombas extratoras que lavam a terra para que reluza o ouro escondido. Os únicos seres vivos são os trabalhadores sem camisa que, de uma artesanal barcaça que flutua na água parada no fundo do buraco de dez metros provocado pela bomba que suga, vigiam a operação.

“Praia adentro”, dizem os habitantes locais, a paisagem é desoladora. A poucos minutos da pesada caminhada na areia, sai um dos mineiros dizendo “Não podem estar aqui. É propriedade particular”. Protege um rudimentar sistema de polias que sobe a terra e a deixa sobre uma lona esticada que serve de peneira. O governo está fechando minas ilegais e os afetados estão resistindo com violência. Por isso, quando o mineiro vai à busca de seus companheiros para encarar os intrusos, é melhor ir embora. Neste ponto, como uma ilusão, no horizonte se vê a linha verde onde a floresta ficou. Mas logo estará mais longe.

Mais para frente, no outro lado da estrada, dá para ver a terra ainda úmida. Um perfeito retângulo preto, rastro da chamuscada feita por alguém. Uns poucos troncos queimados são testemunhas de que aqui houve vida. Paisagens carbonizadas similares se veem uma e outra e outra vez ao longo do percorrido.

O desflorestamento vem aumentando desde a chegada da Interoceânica como resultado da falta de planejamento e controle.
Da estrada, centenas de improvisados caminhos são construídas para entrar na floresta. Isso facilita a extração de recursos naturais.

A fronteira entre a Bolívia e o Peru, na altura do povoado de Soberanía, está marcada por dois pilares de cimento que apenas se veem, na floresta virgem. Esse vasto setor é como percorrer uma rua de Manhattan, mas em lugar de arranha-céus, o que há são árvores imensas de cada lado, de 40 e 50 metros de altura, e milhares de borboletas voam nos seus extremos como se se organizassem por cores, enquanto um bicho-preguiça atravessa a estrada e foge o mais rápido que o seu passo lento permite, evitando os visitantes. Do lado boliviano, fica a Reserva Nacional de Manuripi e, no Peru, a Reserva de Tambopata.

Mas, nessa fronteira selvática em linha reta de 200 quilômetros, não se deixam de escutar as serras elétricas cortando a madeira, principalmente no lado peruano. Seguir o barulho para localizar, uma não é fácil porque a floresta, no começo do trajeto, é fechada. Aparece, de repente, um conjunto de pequenas trilhas. O som parece vir do final de uma destas que termina em um clarão. Ali ao lado, jaz estendida, derrotada, uma pesada árvore do diâmetro do abraço de duas pessoas. Converteram-na em um monte de tábuas ordenas segundo a espessura. A motosserra é desligada, parece que não gostam de visitas. O guia, amedrontado, não quis continuar. “Estes taladores fazem o que querem”, disse, “vão de um lado pro outro da fronteira, sem Deus nem lei”.

De volta à Interoceânica, andando a toda velocidade pela maltratada rodovia que percorre a parte brasileira, em um dos muitos pulos que o automóvel dá por causa dos inúmeros buracos da estrada, o motorista grita empolgado: “Vocês não viram isso?, era uma cobra gigante!”. Sua euforia é detida imediatamente diante das reclamações dos passageiros. Não se deteve e acelera entrando por vários quilômetros em uma paisagem só de planície. Ali, uma vez, havia floresta. De repente, teve que parar para dar passagem a uma centena de vacas que atravessavam a estrada. Agora são elas as senhoras do lugar.

Pecuária onde antes houve fauna selvagem, queimadas, corte de árvores, mineração, isso sempre teve floresta, contam as pessoas. Mas a destruição se acelerou pela estrada que aproximou os mercados e atraiu os aventureiros, principalmente no lado peruano e nos 50 quilômetros de cada lado em todos os países, que, segundo estabeleceu o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), é a área de influência dessa estrada.

Nos planos, estava previsto que a Estrada Interoceânica, assim como outros ambiciosos projetos de infraestrutura para interconectar a América do Sul, cumpririam “com as normas meio ambientais que garantem um bom uso de todos os recursos naturais da zona, permitindo o controle dos abusos que, às vezes, se cometem com esses recursos de maneira ilegal”. Contudo, na prática o que se vê é que, apesar de suas dimensões – três países, o financiamento da banca multilateral e o alto impacto sobre a frágil ecologia amazônica –, o planejamento estratégico do impacto ambiental da estrada vem resultando deficiente, e a gestão e o controle, insuficientes. As autoridades não estão dando conta de fazer deste nervo condutor da economia sul-americana um projeto ambientalmente sustentável.

Não há dúvidas de que, com a interconexão que a Interoceânica traz, mercados se abrirão e o desenvolvimento econômico decolará; contudo, sem um decidido regulamento e controle, o preço que as próximas gerações pagarão pode ser alto demais. Como explica o especialista florestal Marc Dourojeanni, autor do texto A Amazônia Peruana em 2021, nos países desenvolvidos construir estradas não significa destruir recursos naturais e, inclusive, se fazem estradas que atravessam parques naturais sem danificá-los. Em compensação, com a Interoceânica, “em vez de só permitir a comunicação entre dois pontos e o uso de terras aptas para a agricultura previamente separadas para esse uso, a população se instala desordenadamente, em qualquer lugar e sem pedir permissão para ninguém, muitas vezes com o consentimento dos políticos locais. Assim se ocupam terras indígenas, áreas protegidas e solos sem capacidade de uso agropecuário, ocasionando um tremendo e inútil desflorestamento”..

É tanta a desorganização que inclusive as autoridades da capital peruana avaliam denúncias nas quais a mesma maquinaria que foi usada para construir a estrada terminou no serviço da mineração ilegal.

A antropóloga Angélica Almeyda mostra com imagens de satélite como vêm se multiplicando essas rudimentares vias de acesso desde 1990, que passaram de 4.686 quilômetros a 11.045, em 2007.

A sobreposição de concessões
No lado peruano, onde se vê maior devastação por causa da estrada, há um incentivo institucional perverso: a outorga de concessões para diferentes propósitos em zonas que estão se sobrepõem. Assim, cruzam-se as concessões para a exploração madeireira com as que têm permissão para fazer mineração; e destas com as áreas destinadas para a pecuária, desenvolvimento agrícola ou para a exploração da castanha, do ecoturismo e até para a exploração do petróleo. Estas zonas, por sua vez, em certas ocasiões sobrepõem reservas ambientais ou reservas indígenas. “Em seu momento não houve um trabalho conjunto das entidades do Estado”, reconhece o presidente regional de Madre de Dios, José Luis Aguirre. Essa bagunça nas normas facilita a depredação.

É o que acontece na margem esquerda da Interoceânica na via que vai para Cusco. Lá está a área de amortecimento da reserva de Tambopata, onde existiam algumas concessões para a agricultura. Mas seus donos entregaram suas propriedades aos mineradores, argumentando que, como em zonas limítrofes e em uma vasta zona do outro lado da estrada havia concessões mineradoras, eles também podiam alugar seus terrenos para a mineração. Assim, pouco a pouco, os exploradores de ouro foram colonizando; no entanto, a febre subiu à medida que os preços internacionais do metal subiram. Com a onça troy a 1.900 dólares, inclusive voltaram a explorar minas que não eram rentáveis quando esta valia menos de 500 dólares há cinco anos.

Era relativamente óbvio antecipar as dificuldades que viriam com essas sobreposições, bem como resolvê-las antes que a estrada piorasse os conflitos. O simples fortalecimento do cadastro e a conferência das diferentes concessões já seriam um grande avanço. Segundo Eleonora Silva, diretora representante do Banco de Desenvolvimento da América Latina (antes Corporação Andina de Fomento, CAF), este foi um componente do empréstimo de 18 milhões de dólares adicionais que sua entidade fez ao governo peruano para financiar o programa de gestão ambiental e social.

Os recursos se investiram principalmente em estabelecer a propriedade dos ocupantes dos territórios ao longo da estrada, mas não foram suficientes para resolver o problema sobreposição das concessões. O governo local diz que espera que se faça uma revisão respeitando os títulos de acordo com a antiguidade, desde que se cumpram os mandatos do ordenamento territorial que há pouco tempo elaboraram.

Pouca grana
Os críticos garantem que, de qualquer jeito, 18 milhões de dólares não são suficientes para administrar o impacto ambiental de uma obra que custou 2,8 bilhões. Um estudo da organização peruana Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR) garante que a quantidade de verba destinada aos programas de gestão ambiental e social em estradas similares, segundo os padrões regionais, oscilam entre 5 e 20% do custo total da obra. Para o caso da Interoceânica, esta foi de apenas 2% da verba inicial e, para completar, a obra acabou custando três vezes mais. O presidente regional Aguirre diz que, além de pouco, o recurso “foi administrado de Lima e pouco ou nada chegou a Madre de Dios. O dinheiro ficou pelo caminho!”.

Conforme a publicação do DAR, o programa ambiental foi orientado a diminuir o dano ambiental e não a promover o desenvolvimento. A representante do Banco de Desenvolvimento, o qual pôs dinheiro para o programa de gestão ambiental, preferiu não comentar o relatório porque, segundo ela, o DAR fez isso sem comparar a informação com eles. Contudo, afirmou que a contribuição do Banco cumpriu com as normas sociais e ambientais, e que o programa executado ajudou, entre outras coisas, na administração de áreas naturais protegidas e na criação de novas áreas desse tipo. Também disse que o programa ambiental buscou fortalecer a capacidade institucional das entidades públicas nacionais e regionais responsáveis pela administração, prevenção e diminuição dos impactos ambientais e sociais indiretos gerados pela construção. “Foi algo que se fez o tempo todo em diálogo com as regiões”, disse Silva.

É importante ressaltar que, quando a estrada começou, o Peru não contava com um Ministério de Meio Ambiente, por isso tudo era administrado por uma entidade vinculada ao Ministério da Agricultura, que hoje já não existe. Além disso, nesse momento, o país recém começava seu processo de descentralização. Por isso, sabendo que o controle e a gestão ambiental dependem muito da eficiência e da independência dos governos locais, o Banco de Desenvolvimento vem fortalecendo vários programas de governabilidade e gerência política para líderes regionais em reconhecidas universidades de Lima.

Existe, sem dúvidas, uma tendência mundial a que os financiadores de estradas considerem em seus orçamentos principalmente o impacto ambiental direto, como é a disposição de resíduos de obra, a construção de passagens adequadas de riachos, entre outros, e destinem menos recursos para os impactos indiretos, como são os descritos nesta nota. Assumem que o desflorestamento, o mau uso dos solos, a poluição por causa da mineração e demais coisas, estão dentro das responsabilidades gerais do Estado e não podem ser os únicos responsáveis por um projeto assim. Contudo, na América Latina, onde são limitadas as capacidades dos países, esse tipo de projeto transnacional e de interesse continental oferece uma boa oportunidade para gerar transformações emblemáticas no território. Fazer as coisas com os mínimos recursos possíveis significa perder oportunidades para saltos reais no desenvolvimento da América Latina.

Há dois anos, o Peru organiza a documentação para um novo crédito de 16 milhões de dólares para melhorar a gestão ambiental, mas o processo está barrado em debates internos sobre qual dependência nacional administraria os recursos e qual seria o papel dos governos locais.

Extração desmedida
Enquanto isso, as atividades não autorizadas de extração de madeira andam soltas. Não faltam as leis que proíbem o corte indiscriminado, mas diante da débil ou nula supervisão e da corrupção, as normas efetivas ficam só no papel. De acordo com a Lei Florestal peruana, podem-se outorgar concessões florestais de até 40 mil hectares e, antes da estrada, em Madre de Dios, estava permitido extrair até 416pécúbicopor viagem. Mas, agora, autorizou-se retirar quatro vezes esse volume por viagem.

Segundo funcionários locais a cargo do meio ambiente, isso não significa uma licença para um maior desflorestamento, mas sim que a medida vai atada a outros controles para fomentar a existência de florestas certificadas. Na zona se trabalha sob a figura de “quartéis de corte”. Isso significa que o território concessionado se divide em uma quadrícula de 20 espaços, e o titular da concessão só pode cortar as árvores em um desses espaços, para que passem 20 anos antes que se volte a cortar no mesmo quadro. Considera-se que a floresta se recupera nesse tempo.

Mediante massivas queimadas, os agricultores ampliam a fronteira agrícola.
Sem maior planejamento nem critério técnico, alguns municípios aproveitam a facilidade da via para jogar seus lixos perto dela.

Em teoria, pelo menos, o modelo parece viável; mas, na prática, os planos de gestão se aprovam na região, mas a supervisão de que estes se cumpram é feita por uma entidade nacional que não tem a capacidade operativa para controlar de Lima o que acontece na floresta peruana. Além disso, existe outra dependência para administrar as espécies de alto valor protegidas por convênios internacionais por estarem em vias de extinção, como o mogno. Essa estrutura, além disso, não conta com os recursos nem o pessoal necessário para atender tal responsabilidade.

Não é somente um tema de ineficiência, também a corrupção no sistema de concessões no Peru impede que se protejam os ecossistemas. Isso foi o que constatou uma pesquisa jornalística realizada pela Agência de Pesquisa Ambiental (Environmental InvestigationAgency, EIA em inglês), uma organização internacional parceira de CONNECTAS nesta reportagem, que luta contra a delinquência ambiental e defende a natureza. Essa agência documentou em dezenas de casos, alguns em Madre de Dios, como donos de concessões retiram madeira como se procedesse de sua floresta certificada, mas que, na realidade, é retirada de outros terrenos ou de reservas naturais. Funcionários do governo local confirmaram que essa prática vem acontecendo e que querem poder realizar mais visitas aos terrenos para confirmar o que está se extraindo de cada um.

Parte da madeira que os traficantes peruanos roubam vem do lado boliviano. Sem nenhuma delimitação real da fronteira, os taladores entram pelas melhores espécies e isso causa conflitos sociais graves. Por exemplo, Julio García, tenente governador da população de Alerta, no Peru, foi assassinado em 2008 quando tentou interceptar um caminhão que retirava, sem permissão, mogno do país vizinho (ver perfil).

Com a Interoceânica, também cresceu o número de caminhos que penetram cada vez mais dentro da floresta virgem. Utilizando imagens de satélites, a antropóloga Angélica Almeyda, em sua tese de doutorado sobre desflorestamento e desenvolvimento de infraestrutura nessa região da Amazônia, apresenta como estas rudimentares vias de acesso têm crescido desde 1990, que passaram de 4.686 quilômetros a 11.045 em 2007. Nos últimos cinco anos, de acordo com um levantamento realizado pela WWF, pode-se ver como esse crescimento é exponencial. A chegada da Interoceânica gera ramais de novos pequenos caminhos. Em seus estudos, Almeyda, colaboradora de CONNECTAS nesta reportagem, demonstra como, à medida que se reduz o tempo de deslocamento para ir aos centros mais povoados, o desflorestamento aumenta. Estas vias, além disso, coíbem a mobilidade livre dos indígenas originários de Madre de Dios que ainda sobrevivem ali e que recusam o contato com a vida moderna.

Em algumas ocasiões, os destroços foram causados por decisões tomadas em Lima, sem maior reflexão sobre seu impacto na floresta. Assim, em 2004, o governo permitiu a extração madeireira nas concessões de castanha e, quando aboliu a medida em 2007, já era tarde, e longas faixas nas laterais da estrada ficaram peladas. Com o adequado planejamento e com reflorestamento, isso poderia ter dado outros resultados. Agora, em algum desses trechos, iniciou-se a plantação de mamão e laranja, uma atividade que gera uma grande expectativa nos habitantes locais.

Um impacto parecido teve a decisão oficial de finais dos anos oitenta, de dar as vacas às famílias colonas para que tumbassem a floresta e impulsionasse a pecuária. Acabaram com a floresta e não prosperaram porque o solo se esgotou. Mas, agora, novos colonos têm se animado para conquistar terrenos para a pecuária porque veem melhores perspectivas, com fertilizantes mais sofisticados e sementes mais resistentes à mão, e com o exemplo dos vizinhos brasileiros que converteram enormes florestas em produtivos pastos para seu gado.

Iniciativas verdes
Nem tudo é deterioro e perda ambiental no coração amazônico entre a Bolívia, o Peru e o Brasil. Há, nos três países, exemplos de como, se a floresta for bem administrada, a chegada da estrada pode melhorar a vida das pessoas da região e desses países em geral.

Assim, em alguns lugares da Bolívia, as pessoas estão explorando a madeira de forma comunitária e racional. É o caso do povoado de Soberanía, onde o Estado outorgou 26 mil hectares a 50 famílias para que explorassem a floresta. Como parte de um plano operativo ambiental, elaboram um estudo que localiza cada árvore na geografia. Assim, define-se a madeira a ser extraída, paga-se pelos direitos e se verifica no terreno que efetivamente foram essas as árvores cortadas.

Outras boas experiências se encontram do lado peruano na fronteira com o Brasil, no povoamento de Iñapari. Ali, de acordo com a informação cedida pela Prefeitura, existem cinco empresas a cargo de 600 mil hectares certificados e com permanente supervisão. Além de serem as maiores geradoras de emprego da região, começaram processos semi-industrializados para processar a madeira no mesmo local. Embora ainda queimem combustíveis para gerar a energia necessária para seus processos industriais, isso se solucionará quando a energia elétrica em forma constante chegar ao local. Essas empresas de banqueiros estado-unidenses e ingleses e de investidores chilenos, segundo disse a Prefeitura, também estão explorando a possibilidade de conservar florestas para poder vender certificados de captura de carbono no mercado internacional.

No Brasil e no Peru, a produção de castanha tem-se mostrado uma atividade econômica que, na floresta, pode ser ao mesmo tempo rentável e ambientalmente sustentável. Cada ano, entre dezembro e março, essas árvores, muitas delas centenárias, soltam um coco onde estão guardadas as sementes da gostosa noz. Na zona de Madre de Dios, existem mais de 1,2 mil concessões de castanha cujas beneficiadas são principalmente famílias da região. O ano de 2005 foi, por exemplo, muito bom para essa atividade, já que o Peru exportou 18 milhões de dólares nessa noz da Amazônia. A estrada torna mais viável ainda o negócio porque diminui custos de transporte e facilita a abertura de mercados para o produto. E, ao mesmo tempo em que a produção cresce, a floresta se mantém intacta, pois, ao conservar os castanhos, também se preserva a floresta que os rodeia. Além disso, ao redor dessa produção, vários produtores que são ativos social e politicamente também se organizaram.

A velha exploração do látex natural da árvore de borracha ou seringueira, que tinha sido abandonada quando apareceram os materiais sintéticos no mercado, começa a retomar voo nos três países; é outra economia que pode ser rentável e sustentável na floresta. Comunidades em reservas florestais, como a de Manuripi, na Bolívia, já usam novas técnicas que lhes permitem fornecer um produto de melhor qualidade sem prejudicar as árvores. No Peru, a estrada tem atraído outra vez investidores franceses interessados em explorar a borracha e vendê-la no comércio internacional com carimbo verde, como garantia para quem comprá-la que está respaldando uma atividade econômica que protege a Amazônia.

Apesar de a castanha e a borracha serem produções sustentáveis, agora com grande potencial na Amazônia graças à Interoceânica, contam com pouco respaldo oficial. Se os governos ajudassem a comercializá-las internacionalmente, enfatizando quanto contribuem para a preservação da floresta mais importante do planeta, os produtores poderiam vendê-las a melhores preços e poderiam ter mais estabilidade, já que há momentos em que esses produtos podem atingir preços que estão em torno de nove dólares o quilo, e outros onde não pagam mais de dois.

O ecoturismo abre outras possibilidades de desenvolvimento sustentável. E está crescendo a passos gigantes. Cada dia aterrizam no aeroporto de Puerto Maldonado, no Peru, cinco voos que somam uma média de 350 pessoas, principalmente turistas estrangeiros. Um dos visitantes recentes, em outubro de 2011, foi o britânico Mick Jagger, a lenda do rock, e a notícia vem atraindo mais turistas.

Outros visitantes também chegam pela nova estrada desde Cusco até o porto selvático. Há 16 viagens de ônibus por semana que cobrem este trajeto. Porém, ainda há muito campo para crescer, já que a maioria dos turistas brasileiros vai a Puerto Maldonado só de passagem para as ruínas de Machu Picchu e a bela Cusco, e muitos dos estrangeiros que chegam de avião são levados diretamente aos alojamentos ecológicos e gastam pouco no povoado.

A estrada que conecta os três países poderia ser uma bênção de desenvolvimento econômico e, ainda que pareça paradoxo, uma boa desculpa para melhorar a gestão ambiental e a proteção da floresta. Mas isso requer melhor legislação, mais recursos e maior visão para impulsionar as boas iniciativas.

O presidente regional de Madre de Dios, José Luis Aguirre, não é otimista. Ele diz que há muitos poderes, que os mineiros impedem que juízes e fiscais protejam o delicado ambiente e que, além de tudo, o governo central os abandonou. “Me sinto desesperado, perseguido” – disse. “Se não dermos o verdadeiro impulso e apoio econômico e estratégico, vamos nos render diante das máfias que operam aqui. Estou pensando em fazer um chamado internacional para salvar Madre de Dios”. Tomara que seu chamado aqui registrado ecoe.

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