O longo percorrido da Interoceânica sul-americana

No dia 11 de agosto de 2004, os presidentes: do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; do Peru, Alejandro Toledo, e da Bolívia, Carlos Mesa, puseram a primeira pedra para construir uma ponte de 240 metros sobre o rio Acre, na fronteira entre o Brasil e o Peru. Nessa cerimônia, concretizou-se, finalmente, um sonho que os países sul-americanos tinham almejado por muitos anos: contar com uma estrada que unisse o oceano Atlântico ao Pacífico pelo centro da América do Sul. Um ano depois, logo após seu país ter contribuído com 12 milhões de dólares, Lula e os presidentes vizinhos inauguraram a ponte. "Estamos transformando em realidade o imenso potencial de cooperação [...] trabalhamos para garantir que a Amazônia não continue sendo uma região marginada", disse o presidente brasileiro em um discurso que parecia prematuro, porque ainda faltava construir e adequar 2,6 mil quilômetros de estrada do lado peruano, parte desta atravessando a selva. A ideia de construir tal obra nasceu há três décadas, quando os governos militares do Brasil abriram várias estradas para chegar a seus povoados mais afastados, e os peruanos fizeram outras para conectar a selvática região de Madre de Dios ao sudeste, como sua zona andina central, que incluía fazer a ponte sobre o rio que dá nome à capital desse estado, Puerto Maldonado. Para isso, transportaram até lá uns gigantescos trambolhos metálicos, mas a obra não aconteceu e estes ficaram amontoados enferrujando-se por vários anos. O governo de Alberto Fujimori melhorou estas estradas nos anos 1990, mas nunca chegaram a ser realmente transitáveis. Em 2000, o gigante sul-americano deu um impulso definitivo à estrada. O então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso convocou a primeira reunião de presidentes da América do Sul e lançou aí a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que busca integrar a região desenvolvendo a infraestrutura de transporte, energia e comunicação. Esta incluía converter as vias que os governos tinham construído no meio da floresta em uma grande estrada interoceânica, além de outros projetos que permitiriam ao Brasil, principalmente, conectar-se com um continente diante do qual sempre esteve de costas. [caption id="attachment_15108" align="alignnone" width="417"] A ponte sobre o Rio Acre se inaugurou em 2005. Está na fronteira entre o Brasil e o Peru. Sua construção foi o impulso-chave deste projeto transnacional.[/caption] [caption id="attachment_15109" align="alignnone" width="417"] A Ponte Continental sobre o rio Madre de Dios foi habilitada em 2011 e, a partir daí, ficou habilitada a passagem interoceânica[/caption] O Brasil avançou rapidamente com sua parte. Em 2002, já tinha pavimentado a via até a fronteira com o Peru, passando ao lado da população de Cobija, nos limites da selva boliviana. No Peru, dificuldades com o orçamento e normas adversas fizeram com que o megaprojeto demorasse. Finalmente, o governo de Alejandro Toledo (2001-2006) conseguiu levar o Congresso a declarar a continuação da Interoceânica do lado peruano como obra de necessidade pública e isso facilitou ao país o seguimento do processo de construção. Por interesses políticos, o projeto se iniciou com rapidez, mas logo apareceram maiores valores por falhas na engenharia e surgiu a polêmica se os estudos de impacto ambiental e social não tinham sido insuficientes diante de uma obra que afetaria uma ampla área da Amazônia. De fato, esta é a única estrada que atravessa o pulmão do mundo. Como o Peru não tinha os 820 milhões de dólares que custava fazer a estrada de seu lado, da floresta até o litoral pacífico, o Brasil lhe emprestou mais da metade do valor e os outros 300 milhões vieram da banca internacional que exigiu uma garantia por esse valor, a qual foi concedida pela Corporação Andina de Fomento (CAF), que logo mudou o nome para Banco de Desenvolvimento da América Latina. A maior multinacional construtora do Brasil, Odebrecht, liderou, com outras empresas desse país, os consórcios que ganharam, por 25 anos, os cinco trechos em que foi dividida a concessão da estrada peruana. Segundo os contratos, nos primeiros cinco anos, os concessionários construiriam a estrada com os recursos obtidos pelo Peru e, no tempo restante, a operação e a manutenção seriam financiadas com a arrecadação dos pedágios. Fechado o negócio, desencadeou-se o debate político e choveram as pressões sobre o governo de Toledo. Enquanto uns argumentavam que o maior projeto viário do Peru era, na realidade, uma estrada para os brasileiros, no sul, começaram a competir para que a estrada passasse por seus territórios. Ao final, decidiu-se que, desde o ponto conhecido como Ponte Inambari, a estrada se divide em duas bifurcações: uma que vai ao porto em San Juan de Marcona e outra que vai aos portos de Ilo e Matarani, todas sobre o Pacífico. Finalmente, as máquinas começaram a trabalhar em 2006. Dois anos depois, o gasto com a obra já superava 50% do previsto, ultrapassando 1,2 bilhões de dólares. O escândalo fez com que o então presidente Alan García acusasse seu antecessor de ter enganado o país, denunciou a entrega dos contratos e anunciou que buscaria novos construtores. Quando a poeira baixou, os contratos continuaram iguais e o Banco de Desenvolvimento da América Latina emprestou ao Peru 200 milhões de dólares para prosseguir com o projeto. Ironicamente, quem acabou levando mais vantagem política disso tudo foi o presidente García. Durante seu mandato, não deixou de aproveitar as várias inaugurações de pontes e trechos da estrada para reivindicá-la como obra sua. Na inauguração final, em julho de 2010, ao cortar a fita na famosa ponte sobre o rio Madre de Dios, na saída de Puerto Maldonado, para onde tinham levado, décadas atrás, as enormes estruturas metálicas, García disse: "Sei que esta é uma das maiores obras que meu governo podia ter feito pelo povo do Peru e por seu futuro. Talvez seja a mais transcendental e a mais importante". Esta ponte continental, com 723 metros, a mais longa do Peru, era a conexão vital que fazia falta para que a Interoceânica se tornasse uma realidade. Contudo, no dia em que García a inaugurou, só estava habilitada de maneira provisional por duas horas. Mal tinha terminado a cerimônia, as pessoas tiveram que voltar aos precários ferry boats de sempre. A precoce inauguração trouxe à tona outro escândalo devido ao protagonismo de García e levou o ex-presidente Toledo a enfrentá-lo e a reivindicar a paternidade do projeto; a luta durou vários dias, segundo registros da mídia peruana. Finalmente, em meados de 2011 e a uma semana da posse do atual presidente peruano OllantaHumala, um ano depois da inauguração oficial, foi finalmente terminada a esperada Interoceânica Sul, de 5.404 quilômetros, com um custo no lado peruano quatro vezes maior que o planejado. Segundo comunicados da imprensa, a obra supera os 2,8 bilhões de dólares, pouco mais de um milhão de dólares por quilômetro. A promessa de progresso ""Para fazer uma omelete você tem que quebrar alguns ovos", disse o presidente Toledo ao jornal estado-unidense San Francisco Chronicle, quando estava tentando se defender das fortes críticas dos ambientalistas que viam os riscos que traria para o planeta fazer uma estrada que atravessasse o frágil ecossistema da Amazônia. Com apenas um ano da sua entrega, já se advertem os danos ambientais e os problemas sociais que a estrada traz à outrora densa Amazônia peruano-boliviana. O reduzido orçamento de 18 milhões de dólares que o projeto destinou para amenizar o impacto ambiental e social da imensa obra, claramente não são suficientes (ver artigos sobre este tema neste mesmo especial). [caption id="attachment_15110" align="alignnone" width="417"] Os carros-tanque que abastecem de combustíveis as populações fronteiriças da Bolívia atravessam dois países pela interoceânica antes de chegar a seu destino.[/caption]           [caption id="attachment_15111" align="alignnone" width="417"] Terras que antes não tinham maior valor hoje começam a ser ocupadas por investidores e seus custos se elevaram[/caption] A principal promessa da estrada era que traria progresso econômico. Até o momento, os produtos da região do Acre, como a soja, tinham que percorrer 26,3 mil quilômetros para chegar aos portos na China, com uma cara passagem obrigatória pelo Canal do Panamá. Com a nova estrada, essa distância se reduz a 17,5 mil quilômetros como mostram as ilustrações do South American Project (SAP), parceiro do CONNECTAS nesta reportagem. No outro sentido da via, o Peru pode enviar seus produtos a menores custos para a África e a Europa, embarcando-os diretamente nos portos brasileiros no Atlântico. Espera-se que a Interoceânica também melhore o comércio entre o Brasil e o Peru, que hoje praticamente têm fronteiras abertas, e entre estes países com a Bolívia, que está a um passo da estrada. Pressupõe-se que cresçam também as oportunidades comerciais para o Chile, o qual, graças à Interoceânica, terá acesso a um mercado de 200 milhões de consumidores brasileiros que estarão a 21 horas de seu país. Além disso, pode abrir esse mercado também para o Equador, que agora está a pouco mais de dois dias de distância. Supõe-se, obviamente, que quem tirará maior proveito econômico da estrada serão os estados fronteiriços Madre de Dios, no Peru; Acre, no Brasil, e Pando, na Bolívia. Essa tríplice fronteira é conhecida como a Região MAP, fazendo a conexão entre si e com as economias nacionais. Em Madre de Dios, por exemplo, as pessoas podiam demorar até uma semana, em temporada de chuvas, para chegar a Cusco, a joia do império Inca, e agora, de carro particular, podem estar lá até em oito horas. Apesar das expectativas, ao percorrer esta faixa de asfalto de 8,20 metros de largura, em meio da floresta, como fez CONNECTAS, podem passar quilômetros sem que se veja uma alma viva. Talvez esteja ainda cedo para ver um vibrante tráfego de caminhões carregados de produtos com apenas um ano de serviço. Apenas está passando, em média, 160 veículos de carga por mês – a maior parte levando madeira para o Pacífico – e uns 640 passageiros, segundo disseram funcionários do pedágio no quilômetro 73, no pampa peruano, ponto de cruzamento de trânsito em qualquer das direções. Esse pedágio só tinha três meses de instalação quando os repórteres de CONNECTAS passaram por lá. A CAF, com base em cifras do concessionário, diz em seus relatórios que, em 2009, a média diária de veículos na estrada era de 1.622 (uma cifra de data anterior à do término da obra e que não especifica se tinha trânsito internacional). O Ministério de Relações Exteriores respondeu oficialmente que "o tráfego registrado em 2011 corresponde aos valores esperados em 2015". No posto da alfândega peruana, o funcionário de turno foi ainda mais pessimista com as cifras: disse que, nos últimos três meses, não passaram mais de 300 caminhões em direção ao Peru com mercadorias variadas, com tubulação e maquinaria, além de outras ferramentas para os mineiros do pampa, muitos dos quais estão explorando ouro sem permissão. Segundo ele, o que mais se transporta ao Brasil é o cimento e alguns poucos produtos agrícolas.

  [caption id="attachment_15112" align="alignnone" width="417"] No meio da floresta, surpreende encontrar modernos lugares de serviço com pouco uso enquanto a estrada aumenta seu tráfego.[/caption] [caption id="attachment_15113" align="alignnone" width="417"] É evidente o contraste entre a Interoceânica e as vias internas dos povoados por onde esta passa.[/caption] A Bolívia, em compensação, vem tirando vantagem econômica da estrada. Uma vez por semana uma caravana de nove carro-tanques parte carregada de gasolina da capital boliviana, La Paz, atravessam o Peru por Juliaca, pegam toda a Interoceânica, passam pelo Brasil para logo retornar à Bolívia e fornecer combustível à cidade de Cobija. A enorme volta se justifica pelas péssimas condições das estradas entre os Andes e a selva na Bolívia. Mas como a gasolina é mais barata na Bolívia que no Brasil, eles têm que pôr militares para proteger o descarregamento em Cobija, para evitar que se levem o combustível de contrabando para o Brasil. São três as razões que explicam por que está demorando decolar a sonhada bonança comercial que se acredita que trará a estrada entre os três países. A primeira é que não há acordos para que o cruzamento de fronteira seja mais organizado. Os peruanos reclamam de controles excessivos. Carlos Miguel Rios, administrador da transportadora Civa, uma das que mais transitam na região, conta que, para cruzar a fronteira, tem que apresentar certificado de febre amarela, fazer imigração na fronteira e logo ter outro controle em Rio Branco, além dos registros da alfândega. "O trâmite é muito enrolado. Às vezes argumentam razões fitossanitárias e a gente não pode passar a mercadoria. Aqui, o único beneficiado é o narcotráfico, que agora ficou com a estrada expressa. Com uma estrada assim, quase que deveriam desaparecer as fronteiras", disse o transportador. A segunda é que, na teoria, fica barato levar a carga do Brasil aos portos peruanos, mas como o veículo que leva a carga costuma retornar vazio, pois este país exporta muito menos, o frete fica muito caro. O saldo comercial é negativo para o Peru. Ao terminar 2011, as empresas brasileiras venderam 2.450 bilhões de dólares ao Peru e, em troca, o Peru apenas exportou ao Brasil 1.267 bilhões de dólares. Por último, para os motoristas não é fácil levar os gigantescos caminhões articulados brasileiros pelas estreitas estradas andinas peruanas no trecho que vai para Juliaca, no sul do país, onde, segundo transportadores locais, existem trechos com curvas tão estreitas que quase nem os ônibus longos de passageiros podem passar. O transporte de passageiros, em compensação, anda melhor. Do Brasil, duas linhas fazem o percorrido transnacional a Lima, ao centro do país. Uma sai a cada quinze dias de São Paulo a Lima, e a outra viaja duas vezes por semana entre Rio Branco e Cusco. No lado peruano, hoje são 16 rotas de ônibus por semana do interior do país para Puerto Maldonado, quando antes não havia nenhuma. Este último confirma que, por enquanto, a estrada tem beneficiado principalmente a outrora isolada região de Madre de Dios, no Peru. A estratégia de desenvolvimento da IIRSA projetou que, com a realização da estrada, cresceriam as vendas de noz do Brasil, gado, milho, borracha e de peixe cultivado em tanques. No terreno, já se apreciam novos investimentos em cultivos de borracha e aquicultura. Os documentos também previram que haveria uma maior atividade mineradora e se exploraria mais madeira, mas a fortuna vem, principalmente, da mineração e do desflorestamento ilegais que estão deixando um grande saldo negativo em matéria social e ambiental na região. A IIRSA também planejou construir hidroelétricas multinacionais. Uma delas implicaria construir uma gigantesca represa na zona entre a Ponte de Inambari e Juliaca, já tem um convênio assinado em 2009 pelos presidentes García, do Peru, e Lula, do Brasil, e ratificado por um decreto de urgência em janeiro de 2010 no país andino. O pequeno problema que tem é que, para fazer esta geradora de energia para o Brasil, teriam que inundar pelo menos cem quilômetros da estrada recém-terminada. Sem dúvidas, um novo desafio para as políticas de desenvolvimento que estão envolvidas nestes megaprojetos na América Latina.

No dia 11 de agosto de 2004, os presidentes: do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; do Peru, Alejandro Toledo, e da Bolívia, Carlos Mesa, puseram a primeira pedra para construir uma ponte de 240 metros sobre o rio Acre, na fronteira entre o Brasil e o Peru. Nessa cerimônia, concretizou-se, finalmente, um sonho que os países sul-americanos tinham almejado por muitos anos: contar com uma estrada que unisse o oceano Atlântico ao Pacífico pelo centro da América do Sul.

Um ano depois, logo após seu país ter contribuído com 12 milhões de dólares, Lula e os presidentes vizinhos inauguraram a ponte. “Estamos transformando em realidade o imenso potencial de cooperação […] trabalhamos para garantir que a Amazônia não continue sendo uma região marginada”, disse o presidente brasileiro em um discurso que parecia prematuro, porque ainda faltava construir e adequar 2,6 mil quilômetros de estrada do lado peruano, parte desta atravessando a selva.

A ideia de construir tal obra nasceu há três décadas, quando os governos militares do Brasil abriram várias estradas para chegar a seus povoados mais afastados, e os peruanos fizeram outras para conectar a selvática região de Madre de Dios ao sudeste, como sua zona andina central, que incluía fazer a ponte sobre o rio que dá nome à capital desse estado, Puerto Maldonado. Para isso, transportaram até lá uns gigantescos trambolhos metálicos, mas a obra não aconteceu e estes ficaram amontoados enferrujando-se por vários anos. O governo de Alberto Fujimori melhorou estas estradas nos anos 1990, mas nunca chegaram a ser realmente transitáveis.

Em 2000, o gigante sul-americano deu um impulso definitivo à estrada. O então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso convocou a primeira reunião de presidentes da América do Sul e lançou aí a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que busca integrar a região desenvolvendo a infraestrutura de transporte, energia e comunicação. Esta incluía converter as vias que os governos tinham construído no meio da floresta em uma grande estrada interoceânica, além de outros projetos que permitiriam ao Brasil, principalmente, conectar-se com um continente diante do qual sempre esteve de costas.

A ponte sobre o Rio Acre se inaugurou em 2005. Está na fronteira entre o Brasil e o Peru. Sua construção foi o impulso-chave deste projeto transnacional.
A Ponte Continental sobre o rio Madre de Dios foi habilitada em 2011 e, a partir daí, ficou habilitada a passagem interoceânica

O Brasil avançou rapidamente com sua parte. Em 2002, já tinha pavimentado a via até a fronteira com o Peru, passando ao lado da população de Cobija, nos limites da selva boliviana. No Peru, dificuldades com o orçamento e normas adversas fizeram com que o megaprojeto demorasse. Finalmente, o governo de Alejandro Toledo (2001-2006) conseguiu levar o Congresso a declarar a continuação da Interoceânica do lado peruano como obra de necessidade pública e isso facilitou ao país o seguimento do processo de construção.

Por interesses políticos, o projeto se iniciou com rapidez, mas logo apareceram maiores valores por falhas na engenharia e surgiu a polêmica se os estudos de impacto ambiental e social não tinham sido insuficientes diante de uma obra que afetaria uma ampla área da Amazônia. De fato, esta é a única estrada que atravessa o pulmão do mundo.

Como o Peru não tinha os 820 milhões de dólares que custava fazer a estrada de seu lado, da floresta até o litoral pacífico, o Brasil lhe emprestou mais da metade do valor e os outros 300 milhões vieram da banca internacional que exigiu uma garantia por esse valor, a qual foi concedida pela Corporação Andina de Fomento (CAF), que logo mudou o nome para Banco de Desenvolvimento da América Latina. A maior multinacional construtora do Brasil, Odebrecht, liderou, com outras empresas desse país, os consórcios que ganharam, por 25 anos, os cinco trechos em que foi dividida a concessão da estrada peruana. Segundo os contratos, nos primeiros cinco anos, os concessionários construiriam a estrada com os recursos obtidos pelo Peru e, no tempo restante, a operação e a manutenção seriam financiadas com a arrecadação dos pedágios.

Fechado o negócio, desencadeou-se o debate político e choveram as pressões sobre o governo de Toledo. Enquanto uns argumentavam que o maior projeto viário do Peru era, na realidade, uma estrada para os brasileiros, no sul, começaram a competir para que a estrada passasse por seus territórios. Ao final, decidiu-se que, desde o ponto conhecido como Ponte Inambari, a estrada se divide em duas bifurcações: uma que vai ao porto em San Juan de Marcona e outra que vai aos portos de Ilo e Matarani, todas sobre o Pacífico. Finalmente, as máquinas começaram a trabalhar em 2006.

Dois anos depois, o gasto com a obra já superava 50% do previsto, ultrapassando 1,2 bilhões de dólares. O escândalo fez com que o então presidente Alan García acusasse seu antecessor de ter enganado o país, denunciou a entrega dos contratos e anunciou que buscaria novos construtores. Quando a poeira baixou, os contratos continuaram iguais e o Banco de Desenvolvimento da América Latina emprestou ao Peru 200 milhões de dólares para prosseguir com o projeto.

Ironicamente, quem acabou levando mais vantagem política disso tudo foi o presidente García. Durante seu mandato, não deixou de aproveitar as várias inaugurações de pontes e trechos da estrada para reivindicá-la como obra sua. Na inauguração final, em julho de 2010, ao cortar a fita na famosa ponte sobre o rio Madre de Dios, na saída de Puerto Maldonado, para onde tinham levado, décadas atrás, as enormes estruturas metálicas, García disse: “Sei que esta é uma das maiores obras que meu governo podia ter feito pelo povo do Peru e por seu futuro. Talvez seja a mais transcendental e a mais importante”.

Esta ponte continental, com 723 metros, a mais longa do Peru, era a conexão vital que fazia falta para que a Interoceânica se tornasse uma realidade. Contudo, no dia em que García a inaugurou, só estava habilitada de maneira provisional por duas horas. Mal tinha terminado a cerimônia, as pessoas tiveram que voltar aos precários ferry boats de sempre. A precoce inauguração trouxe à tona outro escândalo devido ao protagonismo de García e levou o ex-presidente Toledo a enfrentá-lo e a reivindicar a paternidade do projeto; a luta durou vários dias, segundo registros da mídia peruana.

Finalmente, em meados de 2011 e a uma semana da posse do atual presidente peruano OllantaHumala, um ano depois da inauguração oficial, foi finalmente terminada a esperada Interoceânica Sul, de 5.404 quilômetros, com um custo no lado peruano quatro vezes maior que o planejado. Segundo comunicados da imprensa, a obra supera os 2,8 bilhões de dólares, pouco mais de um milhão de dólares por quilômetro.

A promessa de progresso
“Para fazer uma omelete você tem que quebrar alguns ovos”, disse o presidente Toledo ao jornal estado-unidense San Francisco Chronicle, quando estava tentando se defender das fortes críticas dos ambientalistas que viam os riscos que traria para o planeta fazer uma estrada que atravessasse o frágil ecossistema da Amazônia. Com apenas um ano da sua entrega, já se advertem os danos ambientais e os problemas sociais que a estrada traz à outrora densa Amazônia peruano-boliviana. O reduzido orçamento de 18 milhões de dólares que o projeto destinou para amenizar o impacto ambiental e social da imensa obra, claramente não são suficientes (ver artigos sobre este tema neste mesmo especial).

Os carros-tanque que abastecem de combustíveis as populações fronteiriças da Bolívia atravessam dois países pela interoceânica antes de chegar a seu destino.

 

 

 

 

 

Terras que antes não tinham maior valor hoje começam a ser ocupadas por investidores e seus custos se elevaram

A principal promessa da estrada era que traria progresso econômico. Até o momento, os produtos da região do Acre, como a soja, tinham que percorrer 26,3 mil quilômetros para chegar aos portos na China, com uma cara passagem obrigatória pelo Canal do Panamá. Com a nova estrada, essa distância se reduz a 17,5 mil quilômetros como mostram as ilustrações do South American Project (SAP), parceiro do CONNECTAS nesta reportagem. No outro sentido da via, o Peru pode enviar seus produtos a menores custos para a África e a Europa, embarcando-os diretamente nos portos brasileiros no Atlântico.

Espera-se que a Interoceânica também melhore o comércio entre o Brasil e o Peru, que hoje praticamente têm fronteiras abertas, e entre estes países com a Bolívia, que está a um passo da estrada. Pressupõe-se que cresçam também as oportunidades comerciais para o Chile, o qual, graças à Interoceânica, terá acesso a um mercado de 200 milhões de consumidores brasileiros que estarão a 21 horas de seu país. Além disso, pode abrir esse mercado também para o Equador, que agora está a pouco mais de dois dias de distância.

Supõe-se, obviamente, que quem tirará maior proveito econômico da estrada serão os estados fronteiriços Madre de Dios, no Peru; Acre, no Brasil, e Pando, na Bolívia. Essa tríplice fronteira é conhecida como a Região MAP, fazendo a conexão entre si e com as economias nacionais. Em Madre de Dios, por exemplo, as pessoas podiam demorar até uma semana, em temporada de chuvas, para chegar a Cusco, a joia do império Inca, e agora, de carro particular, podem estar lá até em oito horas.

Apesar das expectativas, ao percorrer esta faixa de asfalto de 8,20 metros de largura, em meio da floresta, como fez CONNECTAS, podem passar quilômetros sem que se veja uma alma viva. Talvez esteja ainda cedo para ver um vibrante tráfego de caminhões carregados de produtos com apenas um ano de serviço. Apenas está passando, em média, 160 veículos de carga por mês – a maior parte levando madeira para o Pacífico – e uns 640 passageiros, segundo disseram funcionários do pedágio no quilômetro 73, no pampa peruano, ponto de cruzamento de trânsito em qualquer das direções. Esse pedágio só tinha três meses de instalação quando os repórteres de CONNECTAS passaram por lá. A CAF, com base em cifras do concessionário, diz em seus relatórios que, em 2009, a média diária de veículos na estrada era de 1.622 (uma cifra de data anterior à do término da obra e que não especifica se tinha trânsito internacional). O Ministério de Relações Exteriores respondeu oficialmente que “o tráfego registrado em 2011 corresponde aos valores esperados em 2015“.

No posto da alfândega peruana, o funcionário de turno foi ainda mais pessimista com as cifras: disse que, nos últimos três meses, não passaram mais de 300 caminhões em direção ao Peru com mercadorias variadas, com tubulação e maquinaria, além de outras ferramentas para os mineiros do pampa, muitos dos quais estão explorando ouro sem permissão. Segundo ele, o que mais se transporta ao Brasil é o cimento e alguns poucos produtos agrícolas.

 

No meio da floresta, surpreende encontrar modernos lugares de serviço com pouco uso enquanto a estrada aumenta seu tráfego.
É evidente o contraste entre a Interoceânica e as vias internas dos povoados por onde esta passa.

A Bolívia, em compensação, vem tirando vantagem econômica da estrada. Uma vez por semana uma caravana de nove carro-tanques parte carregada de gasolina da capital boliviana, La Paz, atravessam o Peru por Juliaca, pegam toda a Interoceânica, passam pelo Brasil para logo retornar à Bolívia e fornecer combustível à cidade de Cobija. A enorme volta se justifica pelas péssimas condições das estradas entre os Andes e a selva na Bolívia. Mas como a gasolina é mais barata na Bolívia que no Brasil, eles têm que pôr militares para proteger o descarregamento em Cobija, para evitar que se levem o combustível de contrabando para o Brasil.

São três as razões que explicam por que está demorando decolar a sonhada bonança comercial que se acredita que trará a estrada entre os três países. A primeira é que não há acordos para que o cruzamento de fronteira seja mais organizado. Os peruanos reclamam de controles excessivos. Carlos Miguel Rios, administrador da transportadora Civa, uma das que mais transitam na região, conta que, para cruzar a fronteira, tem que apresentar certificado de febre amarela, fazer imigração na fronteira e logo ter outro controle em Rio Branco, além dos registros da alfândega. “O trâmite é muito enrolado. Às vezes argumentam razões fitossanitárias e a gente não pode passar a mercadoria. Aqui, o único beneficiado é o narcotráfico, que agora ficou com a estrada expressa. Com uma estrada assim, quase que deveriam desaparecer as fronteiras”, disse o transportador.

A segunda é que, na teoria, fica barato levar a carga do Brasil aos portos peruanos, mas como o veículo que leva a carga costuma retornar vazio, pois este país exporta muito menos, o frete fica muito caro. O saldo comercial é negativo para o Peru. Ao terminar 2011, as empresas brasileiras venderam 2.450 bilhões de dólares ao Peru e, em troca, o Peru apenas exportou ao Brasil 1.267 bilhões de dólares. Por último, para os motoristas não é fácil levar os gigantescos caminhões articulados brasileiros pelas estreitas estradas andinas peruanas no trecho que vai para Juliaca, no sul do país, onde, segundo transportadores locais, existem trechos com curvas tão estreitas que quase nem os ônibus longos de passageiros podem passar.

O transporte de passageiros, em compensação, anda melhor. Do Brasil, duas linhas fazem o percorrido transnacional a Lima, ao centro do país. Uma sai a cada quinze dias de São Paulo a Lima, e a outra viaja duas vezes por semana entre Rio Branco e Cusco. No lado peruano, hoje são 16 rotas de ônibus por semana do interior do país para Puerto Maldonado, quando antes não havia nenhuma. Este último confirma que, por enquanto, a estrada tem beneficiado principalmente a outrora isolada região de Madre de Dios, no Peru.

A estratégia de desenvolvimento da IIRSA projetou que, com a realização da estrada, cresceriam as vendas de noz do Brasil, gado, milho, borracha e de peixe cultivado em tanques. No terreno, já se apreciam novos investimentos em cultivos de borracha e aquicultura. Os documentos também previram que haveria uma maior atividade mineradora e se exploraria mais madeira, mas a fortuna vem, principalmente, da mineração e do desflorestamento ilegais que estão deixando um grande saldo negativo em matéria social e ambiental na região.

A IIRSA também planejou construir hidroelétricas multinacionais. Uma delas implicaria construir uma gigantesca represa na zona entre a Ponte de Inambari e Juliaca, já tem um convênio assinado em 2009 pelos presidentes García, do Peru, e Lula, do Brasil, e ratificado por um decreto de urgência em janeiro de 2010 no país andino. O pequeno problema que tem é que, para fazer esta geradora de energia para o Brasil, teriam que inundar pelo menos cem quilômetros da estrada recém-terminada. Sem dúvidas, um novo desafio para as políticas de desenvolvimento que estão envolvidas nestes megaprojetos na América Latina.